PAUTA
Informação e música em harmonia
Dias de mordaça: o impacto da censura e do terror do AI-5 para a música brasileira

Nos 50 anos de decreto do Ato Institucional n° 5, reportagem especial do Showlivre faz um retrospecto sobre a produção musical lançada à sombra dos Dias de Chumbo
Nesta quinta-feira (13), são completados 50 anos do decreto do temido Ato Institucional n° 5. Numa só tacada, o decreto sentenciou: o fechamento do Congresso Nacional; a cassação de direitos políticos e civis de opositores ao regime militar; a escalada da tortura e das execuções praticadas pelo Estado; o recrudescimento da censura; os “desaparecimentos”, o exílio e a clandestinidade de “subversivos”; a vista grossa, via mordaça da imprensa e dos mecanismos de investigação, da corrupção galopante e blindada com a falácia do chamado “Milagre Econômico”.
O enfrentamento aos excessos da ditadura, no entanto, culminou em um dos períodos mais ricos e inventivos para as artes do País. Percepção de resistência que foi desenhada coletivamente a duras penas ao longo dos quatro primeiros anos que sucederam o golpe civil-militar de 1964, e principalmente depois.
Quando oficialmente teve início o regime de exceção, em 1 de abril de 1964, visto em retrocesso, pelas lentes da cultura, o Brasil vivia momento dos mais inventivos para as expressões artísticas, constatação evidente em manifestações individuais, mas também em ações coletivas, como as do CPC (o Centro Popular de Cultura, da União Nacional dos Estudantes, a UNE).
Na tela grande, defendido por cineastas como Glauber Rocha, Nelson Pereira dos Santos, Joaquim Pedro de Andrade, Ruy Guerra e Leon Hirszman, o Cinema Novo herdava lições estéticas e éticas do neorrealismo italiano para registrar um olhar inédito sobre as mazelas do nosso povo.
Nos palcos, o mesmo fenômeno de “Descobrimento do Brasil” era visto em espetáculos de companhias como o Oficina, de Zé Celso Martinez Corrêa e Renato Borghi, e o Arena, de Augusto Boal, Gianfrancesco Guarnieri e Oduvaldo Vianna Filho.
Na ficção literária, em meio a autores consagrados, como Guimarães Rosa, Érico Verissimo e Clarice Lispector, despontavam talentos como Dalton Trevisan, Carlos Heitor Cony, Lygia Fagundes Telles, José J. Veiga e José Agrippino de Paula. Na poesia, a tríade Décio Pignatari e os irmãos Augusto e Haroldo de Campos reinventavam forma e conteúdo, com o movimento da Poesia Concreta, enquanto Roberto Piva e Claudio Willer reverberavam aqui os versos livres e o existencialismo hedonista dos beats norte-americanos.
Nas artes visuais, o mesmo rebuliço estético era disseminado por artistas ousados, como Hélio Oiticica, Amilcar de Castro, Lygia Clark e Lygia Pape, com as proposições radicais do neoconcretismo, que culminaram em experiências de maior afronta, como a mostra coletiva Nova Objetividade Brasileira, de 1967.
Sob a batuta dos maestros que integravam o movimento Música Nova – Rogério Duprat, Damiano Cozzella, Gilberto Mendes, Willy Corrêa de Oliveira e Julio Medaglia –, novas proposições de vanguarda da música erudita ressoavam até mesmo na produção popular, com a adoção gradual de orquestrações de forte apelo sensorial que culminaram em arranjos primorosos de canções como Tropicália (Caetano, 1967), feito por Medaglia, Saudosismo (Gal, 1968) e Construção (Chico, 1971), ambos de Duprat.
Durante o festival Phono 73, no Anhembi, em São Paulo, Gilberto Gil e Chico Buarque são proibidos de cantar a letra de Cálice, ordem expressa por censores infiltrados no evento
Em momento de rara popularidade, a música instrumental também conquistava ouvintes de todo o País. O primeiro álbum do Tamba Trio (homônimo, de 1962), por exemplo, teve quase 300 mil cópias vendidas. No biênio 1963/1964, dezenas de outros LPs instrumentais foram lançados por pequenas gravadoras, como a Elenco, de Aloysio de Oliveira, e a Forma, dos jovens produtores Roberto Quartin e Wadih Gebara. A maioria dos registros trazia músicos modernos defendendo um novo gênero, derivado da bossa nova, chamado samba-jazz ou bossa-jazz. Entre os combos, o Copa 5, do maestro J.T. Meirelles, o Tamba Trio, de Luiz Eça, o Sambalanço Trio, de Cesar Camargo Mariano, e o Bossa Três, de Luiz Carlos Vinhas.
Com a deposição do presidente João Goulart e o engavetamento de seu projeto progressista, o samba-jazz e a bossa nova – mais especificamente a chamada “segunda geração”, liderada por Edu Lobo e seu amigo Marcos Valle – sofreram ingerências imediatas do golpe.
Cientes do poder da canção como forma de propagar ideias a milhões de brasileiros, os novos compositores deram adeus à temática idílica “do amor, do sorriso e da flor” (sintetizada no título do segundo álbum de João Gilberto, de 1960), para falar das mazelas do povo nordestino, da miséria cotidiana de favelas e morros e da necessidade de resistir às arbitrariedades dos militares. Movimentação que chegou ao ápice no show-manifesto Opinião, apresentado por Nara Leão, Zé Keti e João do Valle, em dezembro de 1964, na sede carioca do Teatro de Arena, em Copacabana.
“Tudo acontecia de bonito no cinema, no teatro e na música, e eu, tipicamente bossa nova, só falava de coisas boas, do amor, da natureza, mas chegamos a 1964 e tudo mudou completamente. O momento exigia posicionamento. Nossa liberdade estava cerceada e tínhamos que combater aquilo tudo.”
O depoimento de Marcos Valle, registrado em entrevista que publiquei com o artista na edição 51 da extinta revista Brasileiros, escancara que, na seara da música popular, foi justamente no campo de avanços estéticos, como a experiência harmônica da bossa nova, que os futuros compositores tiveram de abrir mão para dar lugar a uma música politizada, de complexidade harmônica infinitamente menor, com poucos acordes, porém incisiva nas letras, a famigerada “canção de protesto”, de artistas como Sérgio Ricardo e, maior expoente do gênero, Geraldo Vandré.
Autor do hino Caminhando (Para não Dizer que não Falei das Flores), Vandré foi tido por décadas como notória vítima da tortura e supostamente submetido a práticas horrendas, como lavagem cerebral e emasculação (retirada dos testículos). Fatos que o compositor, recluso há décadas, sempre negou.
Chico, aliás, criou um personagem, o sambista Julinho da Adelaide, para driblar os censores. Com essa estratégia, conseguiu driblar a mordaça e emplacou o sucesso Jorge Maravilha, do refrão “você não gosta de mim, mas sua filha gosta”, suposto recado do artista para o então presidente, o general Ernesto Geisel.
Autor do icônico cartaz de Deus e o Diabo na Terra do Sol, do baiano Glauber, o conterrâneo Rogério Duarte, um dos mais importantes artistas gráficos de sua geração, foi uma das primeiras vítimas a delatar a crescente prática de tortura que culminaria nos dias de barbárie ainda maior do AI-5. Rogério e seu irmão, Ronaldo, foram presos em 4 de abril de 1968, quando pretendiam ir à missa de Sétimo Dia do secundarista Edson Luís, morto por militares no restaurante estudantil Calabouço, no Rio de Janeiro – fato que culminou na chamada Passeata dos Cem Mil, com a mobilização de artistas e cidadãos cariocas contra o regime militar. Os irmãos Duarte passaram seis dias nas mãos dos militares e denunciaram à imprensa, em 11 de julho daquele ano, os excessos cometidos pelos militares.
Os traumas decorrentes da tortura fizeram com que o artista gráfico, autor de capas memoráveis da MPB, como LeGal, de Gal Costa, e Expresso 2222, de Gilberto Gil, vivesse por longos dois anos na mais absoluta clandestinidade. Rogério também teve de ser submetido a internações psiquiátricas e mergulhou em uma crença de redenção pelo misticismo que atravessou a década de 1970.
Para o historiador Sérgio Cabral, em entrevista a este repórter publicada na edição de abril de 2014 na revista Brasileiros, o golpe civil-militar de 1964 foi um momento divisor na história cultural do País, guinada histórica que demandou da classe artística a adoção imediata de novos procedimentos para driblar a censura, em nome de um senso de sobrevivência que ia além da conotação de resistência artística, mas de preservação da própria vida.
“Depois dos militares, a preocupação dos artistas ganhou base política. Não posso garantir que tenha havido um desvio definitivo, que a partir de então a música e a cultura brasileira poderiam ter sido diferentes sem os militares, mas muitos artistas até brincaram com a burrice da censura. A censura tinha a tradição de cortar coisas sem importância e deixar passar outras que, aparentemente, jamais deixaria. Omissões que até hoje não entendo, mas que felizmente houve, como a frase ‘Você me corta um verso e eu faço outro/Que medo você tem de nós?’ (da canção Pesadelo, de Maurício Tapajós e Paulo Sérgio Pinheiro, gravada pelo MPB-4 no álbum Cicatrizes, de 1972).”
Ouça Pesadelo, a contundente composição de Pinheiro e Tapajós
Cabral, no entanto, pondera e acrescenta que Pesadelo foi uma exceção. Segundo ele, o expediente comum era provocar o regime com mensagens cifradas, exercício compulsório que acelerou o processo de maturação de muitos artistas, especialmente no que tange ao lirismo e à criatividade de nossos letristas. “Nasceu daí a arte de fazer música engajada de maneira tão disfarçada que a censura não percebia”, defende o historiador.
Em entrevista publicada em 2011, na edição 46 da Brasileiros, o maestro Arthur Verocai reproduziu a mesma impressão em depoimento a este repórter sobre o trabalho de Vitor Martins, poeta, também parceiro de Ivan Lins, que escreveu as letras de seu primeiro álbum, epônimo, de 1972.
“Como a censura estava no auge e a barra pesadíssima, Vitor escreveu letras bem metafóricas como Presente Grego, exatamente o que significava a ditadura para o povo brasileiro, um presente de grego. A letra dizia coisas como ‘… Por trás das barbas de molho/O olho por olho/Pedra por pedra/Conta por conta…’. Ninguém entendia nada do que Vitor queria dizer – nem mesmo a censura, que liberou tudo.”
Estúpidos ou não, os censores impuseram sua mordaça até mesmo a artistas de grande repercussão internacional, como Milton Nascimento que, em 1968, havia sido convidado a lançar o álbum Courage, nos Estados Unidos, e por duas décadas amortizou uma profunda depressão com o alcoolismo, conforme também relatou a este repórter, em entrevista publicada na Brasileiros em outubro de 2013: “Bastava aparecer o nome Milton Nascimento que a censura vinha e cortava tudo. Nos 20 anos em que não pude falar e fazer quase nada, a única coisa que me restou foi beber muito. Como é que eu ia viver?!”.
Sorte maior tiveram artistas que receberam apoio de corporações multinacionais como a holandesa Philips, tratada com certa vista grossa pelos militares, por evidentes razões econômicas, como lembrou o executivo da indústria fonográfica André Midani, na autobiografia Música, Ídolos e Poder: do Vinil ao Download (editora Nova Fronteira).
“O governo ameaçava cancelar o registro da companhia no Departamento de Censura se não cooperássemos com os ‘princípios patrióticos da revolução’. Desconsideramos, por razões simplistas: se havíamos convencido um artista a trabalhar conosco, estávamos ao lado dele e de suas posições políticas. Por outro lado, o fato de sermos filiais de importantes conglomerados estrangeiros certamente nos ajudou a seguir com essa postura.”

Onipresente, a ação da censura não perdoava nem mesmo compositores estigmatizados de “brega”, como Odair José. Foto: Reprodução / 1973 – O Ano Que Reinventou a MPB
Se a barra pesava menos para os protegidos das grandes gravadoras, sorte menor tiveram artistas menos conhecidos, como o pianista Dom Salvador que, não por acaso, mora em Nova York desde 1973. “A fase era pesadíssima, não havia nenhum interesse político entre nós, mas eu nem desconfiava que estava brincando com fogo.”
Também em entrevista à Brasileiros, reportagem que publiquei no especial Negritude, em novembro de 2011, Salvador lembrou do ambiente hostil do FIC – Festival Internacional da Canção de 1970, quando se apresentou ao lado de seu grupo, Abolição, composto por nove negros.
Vencido por Tony Tornado com BR-3, de Antonio Adolfo e Tibério Gaspar, o festival despertou a ira e um novo alerta nos militares, pois além de Tony – que logo foi obrigado a partir para uma temporada clandestina, de três anos, nos Estados Unidos –, o maestro Erlon Chaves, também negro e então namorado da atriz Vera Fischer, subiu ao palco do FIC.
Ao defender Eu Também Quero Mocotó, composição inédita do amigo Jorge Ben Jor, Erlon e outros integrantes de sua Banda Veneno foram presos, porque, durante o número, o maestro ousou dançar de forma lasciva com suas backing vocals, todas loiras que, não bastasse, ainda beijaram sua boca. Uma afronta imperdoável para alguns, como a mulher de um general acomodada nas primeiras filas da plateia, que quase enfartou e exigiu que o marido desse um fim na ousadia de Erlon. Desse episódio em diante a carreira do maestro declinou vertiginosamente até sua morte, aos 40 anos, em 1974.
O recrudescimento da censura com o “Decreto Leila Diniz”
Uma apuração do jornalista e escritor Zuenir Ventura para a produção de seu livro 1968: o ano que não terminou revelou: somente no período de vigência do decreto (1968-1978), o AI-5 cassou, suspendeu os direitos e puniu mais de mil cidadãos brasileiros. Para a cultura do País, o saldo também foi desprezível: cerca de 500 filmes, 450 peças de teatro, 200 livros e 200 letras de canções foram censuradas.
Operação executada com um efetivo de mais de uma centena de agentes espalhados em diversos Estados pela Divisão de Censura de Diversões Públicas, órgão instituído com o AI-5, que existiu até 1988, quando foi extinto pela nova Constituição.
Ouça Escravos de Jó, de Milton Nascimento. Interpretada por Bituca e Clementina de Jesus, a composição teve a letra, de forte crítica social, “mutilada” pelos censores, assim como o conteúdo seu álbum de origem, o LP Milagre dos Peixes (1973)
A mordaça imposta pela ditadura ganhou reforço significativo em 26 de janeiro de 1970, quando foi sancionado, pelo então ministro da Justiça Alfredo Buzaid, o decreto 1.077, imediatamente apelidado pelo jornal O Globo de Decreto Leila Diniz – uma alusão ao fato de a nova lei, que submeteu editoras de livros, jornais e revistas à censura prévia, ter sido criada logo após a atriz conceder uma entrevista bombástica ao tabloide O Pasquim, repleta de palavrões, na qual Leila defendeu o livre arbítrio e o direito feminino ao sexo livre.
Segundo declaração pública de Buzaid, o decreto fez-se necessário para “preservar a integridade da família brasileira, que guarda tradição e moralidade, combatendo o processo insidioso do comunismo internacional que insinua o amor livre para desfibrar as resistências morais da sociedade”.
Na reprodução de trechos de dois livros-reportagem, os jornalistas e escritores Franklin Martins e Zuza Homem de Melo falam do impacto do AI-5 sobre a música popular Brasileira.
“O Congresso foi fechado por tempo indeterminado. Nas semanas seguintes, foram cassados os mandatos de 55 deputados e seis senadores. Três ministros do STF foram afastados e perderam seus direitos políticos. Deixou de existir habeas corpus no Brasil. Uma enorme soma de poderes foi concentrada nas mãos do presidente da República. Milhares de opositores foram presos: estudantes, intelectuais, trabalhadores, parlamentares, religiosos, juízes. Para evitar prisões e maus-tratos, muitos foram obrigados a passar para a clandestinidade. Outros buscaram o exílio. A partir daí, durante os dez anos seguintes, o Brasil viveria sob o terrorismo de Estado. Abertas as jaulas, os tigres saíram à caça, com passe livre para prender, perseguir, torturar, matar.”
Franklin Martins, no texto de introdução da seleção de Aquele Abraço, de Gilberto Gil, uma das centenas de composições compiladas no livro Quem foi Que Inventou o Brasil – a música popular conta a história da República. Texto extraído do volume 2 (que retrata a produção de música popular entre 1964 e 1985), publicado no capítulo Ditadura e Resistência
“Vandré (o cantor e compositor Geraldo Vandré) vivia seus últimos dias de glória. Seus versos foram considerados altamente subversivos, a música foi proibida de ser executada em rádios, mas era cantada em cerimônias de protesto como se fosse a ‘Marselhesa’ brasileira. Dois meses e meio depois, foi decretado o Ato Institucional n° 5 (AI-5), que, entre outras medidas, suspendia o habeas corpus nos casos de crimes políticos contra a segurança nacional. O governo militar assumia sua face mais dura e repressiva, Caetano e Gil foram presos e se exilaram em Londres, Vandré fugiu do País antes de ser preso, Edu Lobo foi estudar arranjo na Califórnia, Chico Buarque foi para a Itália, e a censura fez valer suas garras contra as letras de canções brasileiras. A Era dos Festivais entrou em curva descendente. (….) Paulinho da Viola venceu o último Festival da Record com uma angustiante e bizarra canção que refletia o drama dos compositores exilados e dos que ficaram no Brasil, Sinal Fechado, que ficou na história como um exotismo na sua obra de grande artista.”
Zuza Homem de Mello, em excerto de Os festivais: uma respiração na ditadura, artigo compilado no livro Música Com Z – artigos, reportagens e entrevistas (1957-2014).
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Leia a reportagem O Romantismo Aguerrido de Taiguara e a Dimensão épica de ‘Ymira, Tayra, Ipy’. Taiguara foi o compositor mais censurado durante os 21 anos de ditadura e chegou a creditar várias de suas composições no nome da esposa para driblar a mordaça dos censores.